Ao final de 2012 eu fiz uma espécie de planejamento visando ler em 2013 alguns autores dos quais nunca tinha lido nenhuma obra, e entre eles figura a escritora brasileira Lygia Fagundes Telles. Resolvi começar pelo seu primeiro romance, A Ciranda de Pedra, como intuito de acompanhar a Nádia Lima, do vlog Mil Folhas, em sua leitura cronológica das obras da autora. No entanto, a autora escolhida para ser lida pelos participantes do Fórum Entre Pontos e Vírgulas no mês de julho foi justamente a paulistana Lygia, então parei com a leitura para esperar pelo resultado da enquete, que teve o livro As Meninas como o mais votado e escolhido para a leitura comentada do mês de julho.
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10 de ago. de 2013
26 de mai. de 2013
Resenha para discussão em fórum: A Morte de Ivan Ilitch - Lev Tolstói
Quando soube que o tema da
discussão do Fórum Entre Pontos e Vírgulas para maio seria literatura russa eu
já vibrei, pois adoro, e gostei mais ainda quando o meu eleito ganhou a votação.
O livro escolhido foi “A Morte de Ivan
Ilitch”, de Tolstói. É uma novela breve,
profunda, além de uma enorme lição sobre a vida e a morte, e a frágil condição
humana.
A novela narra os últimos meses
de vida do personagem que dá nome ao livro; Ivan Ilitch, um burocrata burguês, juiz
e membro de uma corte de apelação da província que é acometido, depois de um acidente doméstico e aparentemente trivial, de um mal que o faz sofrer física e moralmente. Mesmo sabendo de sua morte, já anunciada no título, nada nos faz antever o que virá de suas reflexões acerca da vida e da eminente morte que o cerca.
16 de mar. de 2013
Entre pontos e vírgulas #5: O sentido de um fim - Julian Barnes
Minha memória não é lá muito confiável, aliás, nunca foi, pois desde mais nova não podia contar com ela devido à sua seletividade. Sim, minha memória era atrevida e totalmente seletiva, e, definitivamente, de uns anos pra cá ela já não é mais a mesma. Mas justamente por não querer rememorar alguns fatos ou por não querer de volta algumas sensações é que não me doei inteira à leitura desse livro, muito bom, do qual ouvira falar no ano passado através de um post da Juliana no seu O batom de Clarice... Lembro-me, com efeito, de ter achado muito interessante o mote, e de que gostaria de lê-lo mais pra frente, tanto que fiz anotações sobre ele em meu caderninho de querências.
Então a chance surgiu, com a escolha dele para o livro de março para o fórum Entre Pontos e Vírgulas, e eu logo pensei, caramba, será que já é a hora? Será que consigo me entregar? Mas não, não consegui a entrega necessária, mas saboreei a leitura e extrai muito dela. Mesmo com o corpo se defendendo, a memória não me atraiçoou e acabei, meio que um tanto a contragosto, enveredando pelos caminhos tortuosos de uma certa catarse.
Julian Barbes, escritor inglês e bastante conceituado no cenário da literatura contemporânea, ganhou o prêmio Man Booker Prize em 2011 com O Sentido de um fim. O livro tem como mote alguns antagonismos essenciais ao ser humano, como vida e morte, memória e identidade. Fala do conhecer a si mesmo, aos outros e o mundo a partir da investigação de alguns indícios que o levem [ao narrador e, consecutivamente, ao leitor] à resolução de um enigma, que é a recuperação de uma série de acontecimentos passados que tem repercutido no presente.
O livro é narrado em primeira pessoa e dividido em duas partes. Na primeira, Antony Webster, o narrador, no alto de seus 60 e poucos anos, divorciado, aposentado, pai de uma filha e com netos, e que mantém uma saudável relação de amizade com sua ex-mulher, de vida estabilizada e pacata, recebe como herança uma pequena quantia em dinheiro, alguns papéis e um diário escrito por Adrian Finn, um de seus amigos mais íntimos e antigo colega de escola, que, aos 22 anos, comete suicídio.
Adrian tinha uma inteligência brilhante, uma clareza de pensamento que impressionava, era filosófico e nada pedante, bem como o próprio livro! Além disso, antes de sua morte, ele namorava com Verônica, que foi a primeira namorada de Tony.
A herança é enviada à Tony pelos advogados da mãe de Verônica, falecida há pouco tempo e que determinou, em testamento que fosse entregue a quantia de 500 libras, o diário e alguns papéis de Adrian e com eles um bilhete escrito por ela. Vivendo sua vida pacata, Tony acaba por sofrer com o impacto desse legado que lhe chega "despropositadamente" de seu passado.
Começa então sua investigação de um passado remoto que ainda repercute no presente, através dos meandros de sua memória.
"...o que você acaba lembrando nem sempre é a mesma coisa que você viu." [p. 9]
Relembra, então, não linearmente, mas como alguns fluxos de consciência, da sua adolescência, entre os amigos e colegas de escola, a filosofia, as transgressões naturais da idade, bem como suas arrogâncias e arroubos. Da juventude, já inserido no contexto da faculdade, surge o primeiro relacionamento, a namorada bonita, inteligente, misteriosa e de personalidade difícil, Verônica, e, com ela, seus impulsos e obsessões sexuais são todos frustrados, e aqui devemos nos lembrar de que eram os anos 60 ainda, a liberdade dos 70 ainda estava por vir! ;o) Sente ainda, de forma latente os ressentimentos de classe com relação à Verônica, já que ela é mais rica do que ele e pela forma humilhante e desdenhosa com que ela e sua família o trata. E relembra dos esparsos encontros com seus antigos amigos: Colin, Alex e Adrian, cuja morte deverá ser re-significada.
“História é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação”

A partir do momento que Antony decide se lançar em busca dessas memórias ele também se lança numa busca de si mesmo e de boa parte de sua identidade. O que se dá mais precisamente na segunda parte do livro.
No entanto, desde o início da obra, me debati, e acredito que todos também se debatam, com a resolução do enigma real, que é o de que a memória está longe de ser exata e precisa, mas sim sujeita a variações como toda a experiência.
Esse é um livro que se lê com facilidade, apesar de tantos temas "pesados", e ou por conta de seu tema filosófico. Não há necessidade de pausas durante a leitura para que possamos refletir de forma mais direta acerca de suas questões e teorias. Temos, enfim, um narrador, de certa forma, medíocre nos conduzindo e a si próprio, como um terapeuta, pelos meandros de nossa própria memória, identidade e construção de nosso todo!
Gostei da narrativa curta, direta, até certo ponto sutil, mas acredito que teria gostado ainda mais se não tivesse me imposto um certo distanciamento do mesmo simplesmente por auto-defesa!
E se preferir, veja aí o vídeo!! ;oD
Mas o tempo… como o tempo primeiro nos prende e depois nos confunde. Nós achamos que estávamos sendo maduros quando só estávamos sendo prudentes. Nós imaginamos que estávamos sendo responsáveis, mas estávamos sendo apenas covardes. O que chamamos de realismo era apenas uma forma de evitar as coisas em vez de encará-las. O tempo… nos dá tempo suficiente para que nossas decisões mais fundamentadas pareçam hesitações, nossas certezas, meros caprichos.”
PS: Me esqueci de falar no vídeo e ia cometendo o mesmo erro por aqui!
Adorei a escolha dos dandelions [Dente-de-leão] para a capa, nos mostrando, de cara, a fugacidade e leveza da memória. Bom como a faixa mais escura, nos lembrando as fotocópias que Tony acaba recebendo!
Pensando O sentido de um fim...
Sim sim, leitura encerrada bem como as minhas notas, agora é só me decidir e ver o que sairá mais tarde: vídeo ou post!!
Aguardem!! ;o)
3 de fev. de 2013
Entre Pontos e Vírgulas #3: As Irmãs Makioka - Junichiro Tanizaki
Escrito durante a guerra e sendo impedido de publicar pelos militares, As Irmãs Makioka é um romance onde quase nada acontece e tudo o mais é descrito com perfeição. Trata-se basicamente da história de 4 irmãs [Tsuruki, Sachiko, Yukiko e Taeko] em busca de um marido para a irmã Yukiko. Sem esse casamento a caçula [koisan] Taeko, que já não aguenta mais a espera, não pode se casar. No entanto, Yukiko não tem pressa nenhuma e nem faz questão de demonstrar um pingo de vontade de se casar. Os encontros com os possíveis pretendentes [miais] se sucedem e há sempre um fator impossibilitador para a oficialização do noivado. Até que, finalmente, um dia ela acaba por se casar, mesmo sofrendo de diarreia!
E entre um miai e outro as irmãs e cunhadas se preocupam também com os escândalos protagonizados pela koisan Taeko, que é a mais ocidentalizada das quatro irmãs.
Tanizaki nos conduz de um acontecimento a outro descortinando a mais fina flor da sociedade e cultura japonesa, bem como seus costumes e sua ética. À primeira vista a falta de acontecimentos do romance poderia nos levar a pensar que este possa ser um romance tedioso e de difícil leitura, ainda mais por não estarmos habituados com os nomes e nomenclaturas japonesas, mas não é! Porque o que está em foco na obra não é o que se conta, mas justamente como esta história é contada.
A escrita de Tanizaki é de leitura fácil e agradável, no entanto não é poética, mesmo tendo algumas passagens mais líricas no decorrer do romance, mas seu ponto forte está no perfeito entrelaçamento de fatos tidos como sem muita importância, um tanto quanto despretensiosos, como encontros sem muita relevância, doenças, passeios, trocas de correspondência, rituais e descrição de trajes e padronagens de tecidos.
As Irmãs Makioka retrata o cotidiano de uma típica família japonesa, que já foi muito abastada e que ainda se mantém conservadora, percebemo claramente a discussão dos costumes, da cultura e das relações sociais japonesas tradicionais, além dos conflitos entre valores japoneses e ocidentais, bem como o impacto da modernização no país e nas relações pessoais.
É justamente nas personagens das irmãs caçulas que vemos a grande contradição desse embate. Yukiko, a solteirona e a mais emblemática personagem do romance representa a inércia das relações, a posição da mulher diante da sociedade, aquela qu
e se deixa levar e moldar de acordo com os costumes e tradições e, ao mesmo tempo, podemos ver nela toda a força da tradição. Já na caçula Taeko, podemos ver a representação de um Japão mais aberto à modernização dos costumes, com um entusiasmo pela liberdade e independência.
Título: As Irmãs Makioka
Junichiro Tanizaki, nasceu em 24 de Julho, 1886—30 de Julho, 1965) e é até hoje um dos maiores autores da literatura japonesa moderna e um dos mais popular romancista japonês.
E é no ano de 1923, após ter a casa destruída por um forte terramoto Tanizaki se vê forçado a se mudar coma família para Ashiya, na região de Kyoto e Osaka, e é esse cenário que irá fornecer os cenários à sua obra prima que é o romance As irmãs Makioka.
O erotismo, a sensualidade, o fetichismo e o sadismo são traços característicos da escrita de Tanizaki e podem ser encontrados em quase todas as suas obras, mas foram completamente deixados de lado em As Irmãs Makioka Dentre suas principais obras estão Amor insensato (1924), Voragem (1928), Há quem prefira urtigas (1930), A chave (1956) e Diário de um velho louco. Tanizaki também se aventurou na tradução para o japonês de alguns autores ocidentais, como Stendhal e Oscar Wilde.Tanizaki faleceu aos 79 anos, no dia 30 de Julho de 1965.
E é no ano de 1923, após ter a casa destruída por um forte terramoto Tanizaki se vê forçado a se mudar coma família para Ashiya, na região de Kyoto e Osaka, e é esse cenário que irá fornecer os cenários à sua obra prima que é o romance As irmãs Makioka.
O erotismo, a sensualidade, o fetichismo e o sadismo são traços característicos da escrita de Tanizaki e podem ser encontrados em quase todas as suas obras, mas foram completamente deixados de lado em As Irmãs Makioka Dentre suas principais obras estão Amor insensato (1924), Voragem (1928), Há quem prefira urtigas (1930), A chave (1956) e Diário de um velho louco. Tanizaki também se aventurou na tradução para o japonês de alguns autores ocidentais, como Stendhal e Oscar Wilde.Tanizaki faleceu aos 79 anos, no dia 30 de Julho de 1965.
Autor: Junichiro Tanizaki
Editora: Estação Liberdade
Tradução do japonês: Leiko Gotoda, Kanami Hirai, Neide Hissae Nagae e Eliza Atsuko Tashiro.
744 páginas
Editora: Estação Liberdade
Tradução do japonês: Leiko Gotoda, Kanami Hirai, Neide Hissae Nagae e Eliza Atsuko Tashiro.
744 páginas
PS: Esse livro além de ter sido escolhido para leitura do mês do fórum, também foi meu escolhido para ser o livro do mês de tema livre do Desafio Literário 2013!
4 de dez. de 2012
Fórum Entre Pontos e Vírgulas #1 - O outro pé da sereia - Mia Couto - Contém spoiler!
Essa resenha é totalmente direcionada aos participantes do Fórum Literário Entre Pontos e Vírgulas, que foi Idealizado pela Denise, do Blog e Canal Meus Olhos Verdes, com o intuito de discutirmos a fundo determinadas obras literárias.
E novembro foi o mês de início do fórum e O Outro Pé da Sereia, do Mia Couto, o livro escolhido para o debate.
Se você ainda não leu o livro, tem interesse e não quer saber a fundo do que se trata a história, aconselho a não ler, pois haverá um tanto bom de spoiler! ;oD
Em O outro pé da sereia, Mia Couto faz um relato poético, crítico e com uma pitada refinada de humor de uma Moçambique contemporânea e, ao mesmo tempo, que nos remete à tradição. Vai além do político-social, partindo da ideia de que é preciso que o africano encontre suas origens, tradições, crenças e cultos.
Além do choque cultural, da miscigenação e da globalização é representado os arquétipos do homem africano; e fica claro o laço entre o real e o fantástico durante todo o romance, laço esse tão bem amarrado que em muitas passagens fica difícil perceber onde começa um ou termina o outro!
Mia Couto também se utiliza da poesia para denominar suas personagens de forma que sua personalidade e pontuação no romance fiquem bem marcadas, tornando essas personagens completas e bem complexas.
É a memória e as viagens interiores que guiam todo o romance, como fica bem claro nessa citação do narrador:
“a viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas
quando se atravessam as nossas fronteiras interiores” (p. 65)
A história se passa em 2 momentos históricos distintos, mas que se interligam pela personagem Mwadia Malunga e pela imagem da santa sem pé, que encanta e perturba os que estão perto dela.
No primeiro plano, o contemporâneo, o relato se passa entre os espaços de Antigamente e Vila Longe.
É em Antigamente que encontraremos Mwadia e seu marido Zero Madzero, vivendo uma vida totalmente atípica: sem filhos, isolados e com o Zero silencioso "a esquecer-se", num processo de total anulação de si mesmo, advindo daí o duplo zero de seu nome.
Após o casal encontrar a imagem da santa eles retornam à casa do adivinho local, Lázaro Vivo, que é uma personagem totalmente emblemática! Ele é um homem dividido entre a sua crença e os esperados benefícios da tecnologia. Personifica ainda o consumismo mascarado pela globalização.
E é através de um diálogo entre Mwadia e Lázaro que podemos ver o primeiro conflito de identidade no romance: quando Lázaro diz a ela que, por ter vivido tanto tempo no seminário, Mwadia acabou por se esquecer como é ser africana; pois ela não se permite mais acreditar em crendices e lendas.
Outro ponto que chama atenção é o sonho de Zero, que se vê com as mãos em brasa e a voz de uma mulher com as mãos de água a aplacar a sua dor. Esse é um dos muitos sonhos que permeiam toda a obra e que mantêm uma relação forte com tudo o que a imagem da santa representa. E esse relato ainda nos reporta à carta que Nimi Nsundi à Dia Kumari, do 2º momento histórico do livro, relatando a ela a sua experiencia de rezar:
"De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para me lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui. (p. 113)"
E é nessa passagem que Mwadia observa, novamente, que Zero está a sangrar.
Já na segunda narrativa, logo de cara, nos deparamos com o choque cultural. Na nau de D. Gonçalo, que parte de Goa, na Índia, vão portugueses, africanos e indianos. O sincretismo religioso logo aparece, quando o escravo Nsundi diz que a imagem da santa é que se lançou ao pântano, porque ela quer ficar é lá, por ser Kianda, ou Nzuzu, uma divindade africana das águas.
E novamente vemos um sonho aliado à imagem. O Sacerdote Manuel Antunes (Manu Antun) sonha com a santa lhe prometendo um renascimento. E é à partir desse sonho que terá início, para o padre, uma crise religiosa e de identidade. Ele começa a abdicar da fé católica à medida que testemunha as atrocidades impostas aos escravos e os desmandos da Igreja em Goa.
Além de Manu Antun, as personagens Dia Kumari e Nsundi foram os que mais me tocaram, mesmo aparecendo brevemente no romance. É após uma discussão que Dia acusa Nsundi de ter se rendido à fé e aos modos dos brancos cristãos, e após o suicídio de Nsundi é que Dia encontra sua carta, onde ele afirma:
"A verdadeira viagem é a que fazemos dentro de nós". (p.207)"
A travessia de Nsundi é de libertação, bem como vemos também, em analogia, a morte do elefante. É através dos rituais cristãos, da fé imposta que Nsundi descobre o que não é. Nesse trecho da obra identidade, pertencimento e auto-consciência chegam por um caminho inverso.
Da mesma forma Dia nos mostra que a condição da mulher que é esposa e escrava não difere, ainda mais quando consegue escapar, mesmo à "contragosto", das próprias tradições, como é o seu caso, que sobreviveu à pira funerária do marido morto e foi expulsa do convívio com os seus e da aldeia a que pertencia:
"nem notou a diferença" pois "no mundo a que pertencia, ser esposa é um outro modo de ser escravo. (p. 108)"
Ao desembarcar em África, D. Gonçalo se vê diante da total depravação moral na ilha, descobre que eram os próprios negros que capturavam para vender e escravizar outros negros. E, mesmo tendo a mesma descoberta que Manu Antun, e tendo sido alertado por ele, diante dessa decepção total, D. Gonçalo se enclausura em si mesmo e em amargura até a morte.
Vila Longe é a realidade onírica do romance. Sintetiza todos os elementos, como amor, forças sobrenaturais, humor e lirismo. Aqui a metáfora mais importante é o rio:
“a viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas
quando se atravessam as nossas fronteiras interiores” (p. 65)
E é a caminho de Vila Longe que Mwadia reflete sobre a própria vida. Os laços de pertencimento perdidos na estadia longa em Antigamente, os medos de não mais reencontrar os seus:
"a vida de Mwadia fez-se de contra-sensos: era do mato e nascera em casa de cimento; era preta e tinha um padrasto indiano; era bela e casara com um marido tonto; era mulher e secava sem descendência. (p. 69)"
E estando junto aos seus familiares que Mwadia se reencontra com seu passado: Constança, a mãe, em constante lamúria por ter visto todas as filhas partirem, o padrasto, Jesustino, que a cada ano troca de nome com o intuito de enganar a morte. E a morte de sua tia, Luzmina, que desejava um destino diferente à Mwadia.
Mais um vez, os sonhos permeiam a história e nos elucidam algumas situações. Agora são os sonhos de Constança, o primeiro relata a sua ausência de menstruação e como se sente liberta de todos os laços de obrigações; já o segundo, sonha com a filha, que se torna a divindade das águas, por isso do seu nome Mwadia, que simboliza canoa. Ela é a ponte que viabiliza as histórias vividas em Vila Longe e a recuperação da trajetória desse povo.
É com a chegada dos americanos que à Vila Longe que se inaugura o tom cômico e irônico do romance. Mia Couto nos mostra a ansiedade do povo africano em inventar uma África que agrade ao gosto dos americanos. A comunidade [representada pelo barbeiro e ex-revolucionário Arcanjo Mistura, o ex-boxeador que só lutava com negros e funcionário do correio Matambira e o empresário e tio de Mwadia, Casuarino] se reúne com o intuito de forjar uma memória de escravidão, que já caíra no esquecimento pelas suas próprias contradições, como a captura e venda de negros pelos próprios negros.
O autor também deixa claro o comportamento interesseiro do Moçambicano que sabe tirar proveito do interesse estrangeiro que busca uma África exótica. E é essa estadia dos americanos que passa a ser a grande oportunidade de fonte de renda para a cidade desolada..
A relação que Benjamin Southman estabelece com o continente encontra-se enraizada na visão romântica adquirida de uma matriz cultural euro-americana. Ele parte em viagem para a África por acreditar na necessidade de regresso à Mãe Pátria, para reconstituir-se, pois há muito que sentia-se "como um rio a quem houvessem arrancado a outra margem. (p. 137)".
Por sua percepção aguçada, Mwadia acredita que muitas viagens se cruzam a um só tempo no interior de sua casa, no entanto o esquecimento era também uma condição necessária:
"O serviço dos dias é apenas este: trazer os dias, levar dias. O Tempo existe para apagar o Tempo. (p. 136)".
Mia couto também ironiza e questiona alguns arquétipos do africano pela ideia de pureza, como as crendices, feitiçarias e a própria sexualidade como podemos ver no diálogo entre Constança e Rose, que coloca por terra alguns mitos como o da sexualidade exacerbada do homem africano:
"(...) os homens de Vila Longe acreditavam-se todos muito machos.
- Agora, que estou no fim da minha vida, posso confessar: as vezes que fiz amor com mais paixão foi com mulheres.
- Fomos ensinadas a esperar pelos homens. Mas essa espera demora mais que uma vida. Ninguém espera tanto assim por ninguém.
- Estou espantada, admitiu a brasileira.
- É o que lhe digo: os homens daqui são péssimos amantes.
- Não é isso que consta lá no Brasil.
- isso é porque não pedem a opinião das mulheres.(p. 178)"
Quando Mwadia é convoca a agradar os americanos com encenações de possessão, é que fica ainda mais claro como a característica religiosa se perde em detrimento da questão econômica.
Mas quanto mais ela se envolve na farsa e as leituras passam a fazer parte da farsa é que ela descobre que
" um livro é uma canoa. esse era o barco que faltava em Antigamente. Tivesse livros e ela faria a travessia para o outro lado do mundo, para o outro lado de si mesma. (p.238)",
o livro fazendo-se ponte e rio. E essa descoberta é estendida à Constança também, que passa a sentir-se viva novamente, retomando, inclusive a auto-estima, quando decide perder peso para facilitar sua subida à biblioteca. Aí somam-se o conhecimento oral ao escrito.
Ainda é Mwadia, em seus "falsos" transes, que traz à baila a temática da miscigenação o que desafia a busca de Benjamin por suas raízes, já que ele é, na verdade descendente de Nsundi e Dia Kumari. No entanto o americano se deixa enganar novamente quanto paga por um rito e uma nova identidade totalmente africana, quando é renomeado Dere Makanderi.
O Ponto alto da comicidade do romance se dá com as revelações da Rose, após a fuga de Benjamin.
Ao encarar que a história se repete e que não há como fugir do passado, Arcanjo Mistura é quem diz o mais necessário:
"esquecer para ter passado, mentir para ter destino. (p. 64)"
e aconselha Mwadia a ir embora de Vila Longe:
"O mais triste na história é como tudo se repete, sem surpresa. Já viu como voltamos a dar tantas licenças aos estrangeiros? Ao menos, lá para onde eu vou, eu é que serei sempre estrangeiro. (p. 319)"
E é através de Matambira que Mwuadia descobre que sua mãe engordara por conta das surras que levava de Jesustino e mais ainda, que era para que ele não se machucasse!
nesse confronto de verdades com a mãe que Mwadia se vê obrigada a enxergar que Zero está realmente morto, que fora esfaqueado por Jesustino por ciúmes de Mwadia, e como sugere ainda o diálogo da página 87, fica ainda mais claro que ela fora realmente molestada sexualmente pelo padrasto.
Dessa forma, de maneira imposta é que Mwadia confronta-se com toda a sua verdade. E ainda é a mãe quem lhe dá o rumo da ação necessária para que ela se liberte: a foto de Madzero para ser afixada por ela na parede dos ausentes, ou seja, a aceitação da morte.
A imagem de Nossa Senhora, ou Kianda, resvala nos cursos das travessias. Os pés, que lhe faltara por gerações, são Mwadia que une e sustenta a travessia onírica e histórica. Há crenças que não precisam de base em solo firme, são como água, ar, vento e se equilibram no ventre das palavras e dos silêncios.
Sua viagem de volta à Antigamente é o mesmo que retornar aos labirintos da alma, o que se reafirma na voz do narrador:
"a viagem termina quando encerramos as nossas fronteiras interiores. Regressamos a nós, não a um lugar. (p. 329)"
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