1 de jun. de 2013

Resenha: O último vôo do flamingo - Mia Couto





Mais uma vez me pego diante de um livro do escritor moçambicano Mia Couto que de uma forma excepcional me arrebatou, me tirou do chão duro da minha realidade e  me transportou para outra realidade igualmente dura, entretanto cheia de poesia, neologismos e um amor à nação, à humanidade que parece nunca findar. Não é à toa que só agora, depois de um certo tempo que o li, que consigo parar para tentar achar um pouco de coerência e tentar passar um pouco do muito que o livro O último vôo do flamingo, me impressionou.


Em fins de tarde, os flamingos cruzavam o céu. (...) Tudo nesse momento era sagrado. (...) Para ela, os flamingos eram eles que empurravam o sol para que o dia chegasse do outro lado do mundo.

Mais uma vez, o autor nos conduz pelo realismo fantástico, por seus neologismos, poesia, humor, sua crítica certeira e sua consciência histórico-política para  moldar a história e tornar claro o fato.

O último vôo do flamingo conta a passagem de Massimo Risi pela Vila de Tizangara, em Moçambique, na África. A vila é governada por administradores corruptos, que lucram com a pobreza e a desgraça do povo africano. Risi é inspetor da missão de paz das Nações Unidas, que tem como tarefa descobrir como e por que os seus companheiros de farda estão explodindo, e dos quais o único fragmento que resta é o pênis, juntamente com o capacete azul celeste da ONU. E é acompanhado quase que o tempo todo pelo personagem tradutor de Tizangara, que também é o narrador da obra. 

- Cortaram esta coisa do homem ou vice-versa?

O estranhamento por parte de Risi aumenta à medida que ele entra em contato com os moradores da vila que, a seu ver, são quase sobrenaturais, assim como os eventos que ali ocorrem. O italiano conhece alguns habitantes da vila que acabam por transformar suas expectativas em nenhuma expectativa. Primeiro conheceu Anadeusqueira, a prostituta, e o administrador, Estevão Jonas e sua esposa Ermelinda, que resguardam a parte mais cômica de todo o livro; depois Chupanga, o puxa- saco faz tudo do administrador; o hospedeiro da pousada onde ficou instalado; e, mais intensa e intimamente, conheceu Temporina, uma moça formosa com rosto de velha.

De repente, o italiano tropeçou num vulto. Era uma velha, talvez a mais idosa pessoa que ele jamais vira. [...] O italiano esfregou os olhos como se buscasse acertar a visão. É que o pano deixava entrever um corpo surpreendentemente liso, de moça polpuda e convidativa.

Mais à frente, outros personagens nos são apresentados, como o Padre Muhando, que tem uma relação muito particular, bem humorada e íntima com Deus; o pai do narrador, Sulplício, que é de onde recebemos a parte mais lírica da narração; Zeca Andorinho, o feiticeiro; Hortência, tia de Temporina e que já está morta.

Quanto mais Risi tenta se infiltrar na cultura moçambicana e tenta desvendar seus mistérios, mais perdido ele fica diante dos mistérios de personagens, das crenças em feitiços e coisas sobrenaturais, de bebidas alucinógenas, e de coisas que fogem completamente à razão.

A ironia e a crítica são quase palpáveis, pois Mia Couto nos conduz com maestria, pelas vias do fantástico, a um país, vitimado durante séculos por destruições, crimes que permanecem impunes, mistérios soterrados entre vítimas e minas e tradições abandonadas.

Morreram milhares de moçambicanos, nunca vos vimos cá. Agora, desapareceram cinco estrangeiros e já é o fim do Mundo?

Em O último vôo do flamingo observamos ainda, bem como quando da leitura de O Outro pé da sereia, os preconceitos  e a melancolia que existem nas sociedades africanas; percebemos os africanos como estranhos no ninho,  buscando sua identidade no passado de um continente esfacelado, bem como sua sociedade até hoje, depois de ser invadida, corrompida e dilacerada, como o pênis em plena estrada, às portas da cidade.


Percebeu-se algum desprezo no modo como disse "mulato". O padre Munhando já falara contra esse preconceito. O pensamento do sacerdote ia direito no assunto: mulatos, não são todos nós? Mas o povo, em Tizangara, não se queria reconhecer amulatado. Porque o ser negro - ter aquela raça - nos tinha sido passado como nossa única e última riqueza. E alguns de nós fabricavam sua identidade nesse ilusório espelho.


É através da figura do narrador, em suas memorialidades, que o autor nos desenha o reencontro do africano com a terra, suas origens, referências e tradições. E flamingo, pássaro que traz e leva o novo dia, no imaginário daquele povo é o símbolo de esperança, sentimento que é encarnado em Massimo Risi, e a pretensão do autor, como ele mesmo bem disse em seu discurso na entrega do prêmio Mário Antônio, em 2001, fica muito clara:

O último voo do flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência – a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.


♥♥♥♥♥



PS: Ler Mia Couto é um sopro de vida, poesia, conscientização política e humana, mas também é um sofrimento pra alma tentar condensar em meras palavras, tantas vezes repetidas, tudo de novo que ele nos transborda...








Título: O último vôo do flamingo
Autor: Mia Couto
Edição: 1
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2005
Páginas: 232



3 comentários:

Déa disse...

foi um dos primeiros, ou o primeiro, livro do Mia Couto que li. sua resenha foi um relembramento, quase uma releitura.
um beijo! :)

Anna disse...

Meu primeiro foi O Outro pé, e alguns contos aleatórios. Mas desde o primeiro que eu quero toda a obra dele, Déa!

Obrigada pela leitura e mais ainda pelo comentário, lindeza!

Xerinhos
Paty

Unknown disse...

resenha muito poética Patricia! :)
O livro parece muito interessante e profundo pelas suas palavras, da uma vontade grande de ler.

Tenho de ler logos os contos que tenho dele aqui para partir para esses romances.

Abraços