Mais uma vez me pego diante de um livro do escritor moçambicano Mia Couto que de uma forma excepcional me arrebatou, me tirou do chão duro da minha realidade e me transportou para outra realidade igualmente dura, entretanto cheia de poesia, neologismos e um amor à nação, à humanidade que parece nunca findar. Não é à toa que só agora, depois de um certo tempo que o li, que consigo parar para tentar achar um pouco de coerência e tentar passar um pouco do muito que o livro O último vôo do flamingo, me impressionou.
Em fins de tarde, os flamingos cruzavam o céu. (...) Tudo nesse momento era sagrado. (...) Para ela, os flamingos eram eles que empurravam o sol para que o dia chegasse do outro lado do mundo.
Mais uma vez, o autor nos conduz pelo realismo fantástico, por seus neologismos, poesia, humor, sua crítica certeira e sua consciência histórico-política para moldar a história e tornar claro o fato.
O último vôo do flamingo conta a passagem de Massimo Risi pela Vila de Tizangara, em Moçambique, na África. A vila é governada por administradores corruptos, que lucram com a pobreza e a desgraça do povo africano. Risi é inspetor da missão de paz das Nações Unidas, que tem como tarefa descobrir como e por que os seus companheiros de farda estão explodindo, e dos quais o único fragmento que resta é o pênis, juntamente com o capacete azul celeste da ONU. E é acompanhado quase que o tempo todo pelo personagem tradutor de Tizangara, que também é o narrador da obra.
- Cortaram esta coisa do homem ou vice-versa?
O estranhamento por parte de Risi aumenta à medida que ele entra em contato com os moradores da vila que, a seu ver, são quase sobrenaturais, assim como os eventos que ali ocorrem. O italiano conhece alguns habitantes da vila que acabam por transformar suas expectativas em nenhuma expectativa. Primeiro conheceu Anadeusqueira, a prostituta, e o administrador, Estevão Jonas e sua esposa Ermelinda, que resguardam a parte mais cômica de todo o livro; depois Chupanga, o puxa- saco faz tudo do administrador; o hospedeiro da pousada onde ficou instalado; e, mais intensa e intimamente, conheceu Temporina, uma moça formosa com rosto de velha.
De repente, o italiano tropeçou num vulto. Era uma velha, talvez a mais idosa pessoa que ele jamais vira. [...] O italiano esfregou os olhos como se buscasse acertar a visão. É que o pano deixava entrever um corpo surpreendentemente liso, de moça polpuda e convidativa.
Mais à frente, outros personagens nos são apresentados, como o Padre Muhando, que tem uma relação muito particular, bem humorada e íntima com Deus; o pai do narrador, Sulplício, que é de onde recebemos a parte mais lírica da narração; Zeca Andorinho, o feiticeiro; Hortência, tia de Temporina e que já está morta.
Quanto mais Risi tenta se infiltrar na cultura moçambicana e tenta desvendar seus mistérios, mais perdido ele fica diante dos mistérios de personagens, das crenças em feitiços e coisas sobrenaturais, de bebidas alucinógenas, e de coisas que fogem completamente à razão.
A ironia e a crítica são quase palpáveis, pois Mia Couto nos conduz com maestria, pelas vias do fantástico, a um país, vitimado durante séculos por destruições, crimes que permanecem impunes, mistérios soterrados entre vítimas e minas e tradições abandonadas.
Morreram milhares de moçambicanos, nunca vos vimos cá. Agora, desapareceram cinco estrangeiros e já é o fim do Mundo?
Em O último vôo do flamingo observamos ainda, bem como quando da leitura de O Outro pé da sereia, os preconceitos e a melancolia que existem nas sociedades africanas; percebemos os africanos como estranhos no ninho, buscando sua identidade no passado de um continente esfacelado, bem como sua sociedade até hoje, depois de ser invadida, corrompida e dilacerada, como o pênis em plena estrada, às portas da cidade.
Percebeu-se algum desprezo no modo como disse "mulato". O padre Munhando já falara contra esse preconceito. O pensamento do sacerdote ia direito no assunto: mulatos, não são todos nós? Mas o povo, em Tizangara, não se queria reconhecer amulatado. Porque o ser negro - ter aquela raça - nos tinha sido passado como nossa única e última riqueza. E alguns de nós fabricavam sua identidade nesse ilusório espelho.
É através da figura do narrador, em suas memorialidades, que o autor nos desenha o reencontro do africano com a terra, suas origens, referências e tradições. E flamingo, pássaro que traz e leva o novo dia, no imaginário daquele povo é o símbolo de esperança, sentimento que é encarnado em Massimo Risi, e a pretensão do autor, como ele mesmo bem disse em seu discurso na entrega do prêmio Mário Antônio, em 2001, fica muito clara:
O último voo do flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência – a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.
♥♥♥♥♥
PS: Ler Mia Couto é um sopro de vida, poesia, conscientização política e humana, mas também é um sofrimento pra alma tentar condensar em meras palavras, tantas vezes repetidas, tudo de novo que ele nos transborda...
Título: O último vôo do flamingo
Autor: Mia Couto
Edição: 1Editora: Companhia das Letras
Ano: 2005
Páginas: 232
3 comentários:
foi um dos primeiros, ou o primeiro, livro do Mia Couto que li. sua resenha foi um relembramento, quase uma releitura.
um beijo! :)
Meu primeiro foi O Outro pé, e alguns contos aleatórios. Mas desde o primeiro que eu quero toda a obra dele, Déa!
Obrigada pela leitura e mais ainda pelo comentário, lindeza!
Xerinhos
Paty
resenha muito poética Patricia! :)
O livro parece muito interessante e profundo pelas suas palavras, da uma vontade grande de ler.
Tenho de ler logos os contos que tenho dele aqui para partir para esses romances.
Abraços
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