Quando soube que o tema da
discussão do Fórum Entre Pontos e Vírgulas para maio seria literatura russa eu
já vibrei, pois adoro, e gostei mais ainda quando o meu eleito ganhou a votação.
O livro escolhido foi “A Morte de Ivan
Ilitch”, de Tolstói. É uma novela breve,
profunda, além de uma enorme lição sobre a vida e a morte, e a frágil condição
humana.
A novela narra os últimos meses
de vida do personagem que dá nome ao livro; Ivan Ilitch, um burocrata burguês, juiz
e membro de uma corte de apelação da província que é acometido, depois de um acidente doméstico e aparentemente trivial, de um mal que o faz sofrer física e moralmente. Mesmo sabendo de sua morte, já anunciada no título, nada nos faz antever o que virá de suas reflexões acerca da vida e da eminente morte que o cerca.
[À partir daqui a resenha contém uma série de spoiler, pois tem como finalidade a discussão da obra como um todo, se quiser prosseguir com a leitura saiba que o fará por sua conta e risco! ;oD ]
A narrativa começa nos mostrando o quanto a dor, a amizade e a lamentação de um ente e ou amigo querido pode ceder rapidamente seu posto aos interesses mesquinhos de uma burguesia hipócrita. Ainda no fórum criminal, onde Ivan trabalhava, entre uma e outra sessão de julgamento, um de seus colegas lê a nota de falecimento no obituário do jornal e, condoído, informa aos outros funcionários, que após certa lamentação, o deixam de fazer para pensar nas vagas que surgirão com essa “perda” e nas promoções que poderão angariar para si e seus familiares, que era, justamente, o que realmente lhes importava.
No entanto, no decorrer da narrativa, percebemos claramente que a posição do autor não é criticar os amigos de Ivan diante de uma frieza com relação à sua morte, mas sim nos mostrar que quanto mais distantes estamos da morte, menos ela nos abate. Enquanto não experienciarmos de fato a morte, ou vê-la mais de perto em algum parente próximo e ou sendo sinalizados por ela com doenças, ela jamais nos será tão real, ou não pensaremos nela como algo que possa nos acontecer assim, naturalmente, de uma hora para outra.
“O próprio fato da morte de um conhecido tão próximo despertou como de costume, em cada um que teve dela conhecimento, um sentimento de alegria pelo fato de que morrera um outro e não ele. ‘Aí está, morreu; e eu não’ – pensou ou sentiu cada um.”
Quando Piotr, amigo da família de
Ivan, vai ao velório, forçadamente pelas imposições sociais, podemos perceber
seu desconforto e a inabilidade de ação diante do morto. E mais uma vez
percebemos o quanto é comum que o outro se contente em elevar o morto, coloca-lo
em um patamar de quase perfeição, onde a morte o exime de qualquer culpa ou
pecabilidade:
“Mudara muito, emagrecera ainda mais desde a última vez em que Piotr Ivânovitch o vira, mas, como todos os defuntos, tinha o rosto ainda mais belo e, sobretudo, mais significativo do que fora em vida. Esse rosto expressava que fora feito o que se devia fazer, e que se fizera corretamente. Ademais, nessa expressão, havia ainda uma censura ou uma lembrança aos vivos. A lembrança pareceu a Piotr Ivânovitch inconveniente, ou, pelo menos, não lhe dizer respeito. Teve uma sensação desagradável, por isto persignou-se mais uma vez rapidamente, em seguida virou-se e caminhou para a porta, segundo lhe pareceu com demasiada rapidez, que contrariava as regras da decência.”
No entanto, o interesse em
garantir alguma vantagem com relação a morte de Ivan não fica legada somente
aos “amigos”, incluem aí a própria família. Como podemos ver diante da atitude
da viúva, Prascóvia Fiódorovna, em conversa com Piotr, onde, depois de certa
dissimulada martirização, diz a que veio, interessada apenas em garantir para
si uma polpuda pensão do governo bem como saber das facilidades que poderia
obter para consegui-la mais rápido:
“Ela fingiu pedir a Piotr Ivânovitch um conselho sobre a pensão a receber; mas ele via que a mulher já estava a par, até as menores minúcias, mesmo daquilo que ele não conhecia: ela sabia tudo o que era possível abocanhar do Tesouro, em virtude daquela morte, mas queria saber se não era possível de algum modo abocanhar ainda mais.”
Tolstói nos apresenta Ivan Ilitch
como um sujeito preocupado com sua vida pessoal e profissional, segundo os
padrões, as leis da sociedade em que está inserido, uma pessoa respeitável,
admirável, correta e responsável. E é quando começa a construir uma
carreira sólida e respeitável, que conhece sua futura esposa, Prascóvia
Fiódorovna, e á medida que a conhece e percebe o interesse da jovem por ele
questiona-se acerca do casamento:
“Era de boa família nobre e nada feia; e havia ainda uma pecuniazinha. Ele podia contar com um partido mais brilhante, mas também este não era mau. Ivan Ilitch tinha o seu ordenado, e ela, segundo esperava o noivo, teria outro tanto. A parentela era boa, e ela, uma mulher simpática, bonitinha, direita. Dizer que Ivan Ilitch casou-se porque se apaixonara pela noiva e encontrara nela compreensão para as suas concepções sobre a existência seria tão injusto como afirmar que se casou porque as pessoas das suas relações aprovaram aquele partido. Ivan Ilitch casou-se de acordo com os seus próprios cálculos: conseguindo tal esposa, fazia o que era do seu próprio agrado e, ao mesmo tempo, executava aquilo que as pessoas mais altamente colocadas consideravam correto. E Ivan Ilitch casou-se”.
Mas logo o casamento se afigura
um verdadeiro martírio para Ivan, pois os caprichos e ciúmes de sua esposa
acabam por minar seus sonhos de um casamento conveniente e prático, e quanto mais
cresce o seu desagrado e indisposição com relação à esposa, mais ele se recolhe
em sua vida profissional. E é durante a decoração de sua nova residência, após
uma mudança de província, que o protagonista sofre um pequeno acidente
doméstico aparentemente superficial, mas
que, no final, nos mostra suas consequências funestas.
“Gozavam todos de boa saúde. Não se podia chamar de doença o fato de Ivan Ilitch dizer às vezes que tinha um gosto esquisito na boca e certa sensação desagradável no lado esquerdo do estômago. Mas aconteceu que esta sensação desagradável começou a aumentar a transformar-se não ainda em dor, mas na consciência de um peso permanente do lado e em mau humor.”
A suspeita simples de uma doença,
e de que ela seja grave e fatal, invade o protagonista de pavor e desespero, como
outra doença a envenenar- lhe o espírito. E à medida que a sensação
desagradável evolui para uma dor persistente e cada vez mais forte, Ivan se vê
cada vez mais abalado, mau humorado e irritadiço, deixando cair, por fim, a
máscara de sua verdadeira personalidade: mesquinho, rancoroso e egoísta. Só a
sua dor e seu sofrimento tem real importância, e doravante os esforços e
preocupações de todos, nada, nunca é suficiente, seu sofrimento é sempre maior
e as pessoas incapazes de entendê-lo. Dessa forma, prisioneiro do rancor, sente
como se o mundo tivesse para com ele uma dívida eterna, e sofre ainda mais por
não poder cobrá-la de acordo com o que acredita ser correto.
“E ele se enfurecia contra o infortúnio ou contra as pessoas que lhe causavam dissabores e que o assassinavam, e sentia que esse enfurecimento o estava matando; mas não podia privar-se dele.”
À medida que seus sintomas se
agravam, Ivan procura vários médicos, e, já na primeira consulta, se ressente da
frieza com que é tratado pelo médico e da indiferença e impessoalidade com que
lhe apresentado o diagnóstico, sem o mínimo cuidado, por parte do médico, em
parecer querer reconfortar o paciente. A desumanização dos médicos revela-se um
fator de aceleração da doença e de uma aproximação mais rápida da morte. Em
momento algum o paciente recebe afeto e atenção da parte dos médicos, o que lhe
provoca um sofrimento ainda maior.
Ivan concluiu [...] que as coisas iam mal, embora isso fosse indiferente ao médico e talvez a todos os demais. E esta conclusão impressionou Ivan Ilitch morbidamente, despertando nele um sentimento de grande comiseração por si mesmo e de profundo rancor contra aquele médico, tão indiferente a uma questão de tamanha importância.
Suas preocupações burguesas
perdem sentido e cedem espaço diante consciência que toma da gravidade do seu
problema; a enfermidade modifica completamente suas perspectivas, e de repente
Ivan vivencia sua própria dor e esfacelamento. Com a proximidade iminente da
morte medita profundamente sobre sua existência, mergulhando em si mesmo em busca
do autoconhecimento. É a hora do ajuste de contas consigo mesmo.
É em casa, em seu escritório, que
Ivan encontrará uma espécie de conforto e onde passará seus últimos e mais dolorosos
instantes. Guerássim, seu empregado, uma pessoa simples e bondosa, é o único
que sente compaixão por Ivan; é ao seu lado que ele vai compreender o sentido
da confiança e da afeição, já que nem mesmo com a esposa e com a filha pode
contar. O empregado é a única pessoa realmente bem aceita por Ivan, pois o
mesmo comporta-se conforme o esperado em relação ao sofrimento de seu patrão, alguém
que é bondoso e atencioso com este patrão não porque ele seja Ivan Ilitch, o
juiz, mas sim por ser alguém merecedor de sua benevolência, como qualquer
pessoa. Em contrapartida, fora do seu escritório, está tudo o que Ivan Ilitch
prefere evitar, principalmente sua esposa.
Mas é a inocência de uma criança aflita com os gritos de dor do pai, o filho caçula de Ivan, em contraste com a corrupção do mundo dos homens, que o desconcertam e o levam a transformar-se. É,
então, em seu leito de morte, pouco antes de morrer, que Ivan se reconcilia,
graças ao filho caçula, com o mundo, com Deus e consigo mesmo.
“E justamente então Ivan Ilitch caiu no fundo, viu a luz e percebeu que a sua vida não fora o que devia ser, mas que ainda era possível corrigi-lo. [...] Sentiu então que alguém lhe beijava a mão. Abriu os olhos e dirigiu-os para o filho. Teve pena dele .“
Aqui a verdadeira piedade, não a
de si, egoísta e mesquinha, mas aquela
que ceder lugar a algo maior, se
interpõem em sacrifício ao amor que o leva à transcendência. Não importa quão
ridícula e mesquinha tenha sido toda a vida sua vida, no final, Ivan morre com
a consciência tranquila por ter finalmente admitido suas falhas e culpas.
“Sim, eu os atormento – pensou. – Eles têm pena de mim, mas estarão melhor depois que eu morrer.” Quis dizer isso, mas não teve força. “Aliás, para quê falar, é preciso agir” – pensou. Indicou o filho com os olhos e disse à mulher: – Leve-o daqui… dá pena… e você também… – Quis dizer, ainda, “perdoe-me”, mas disse “deixe-me passar”, e, não tendo mais forças para corrigir o lapso, esboçou um gesto de renúncia, sabendo que seria compreendido por quem importava.E de repente, percebeu com clareza que aquilo que o atormentara e não o deixava, estava de repente saindo uma vez, de ambos os lados, de dez lados, de todos os lados. Eles dão pena, preciso fazer com que não sofram. Libertá-los e libertar a si mesmo desses tormentos. “Como é bom e como é simples – pensou. – E a dor – perguntou em seu íntimo. – Para onde foi? Eh, onde estás, minha dor?” Prestou atenção.“Sim, ei-la. Ora, e então? Que seja a dor”.“E a morte? Onde está?”Procurou seu habitual medo da morte e não o encontrou. Onde ela está? Que morte? Não havia nenhum medo, porque também a morte não existia.Em lugar da morte, havia luz."
A Morte de Ivan Ilitch, é indiscutivelmente uma de suas obras mais primorosas! Uma novela curta mas com uma carga de reflexões que nos faz ficar horas olhando pra dentro de nós mesmos a fim de, ao menos tentar, traçar um rumo mais certo, honesto e feliz pra nosso próprio início e, consequentemente, fim.
♥♥♥♥
3 comentários:
Paty, querida, excelente resenha!
Fiquei pensando no meio do seu texto o quanto a questão do casamento (fora a da morte, claro!) perseguiu Tolstói! rs
Gostei muito também de você lembrar no início do seu texto o quanto ele procurou mostrar a diferença entre a morte distante (de um outro com o qual só se mantém relações distantes - como no caso dos "companheiros" de Ivan) e da morte próxima.
E também gostei da sua lembrança do que representou para Ivan o grito de dor sincero do filho no momento final. Eu me arrepiei nessa parte!
Abraços!
Gostei do seu texto, Patrícia! Assim como Tolstói, você foi bem direta, focou nos pontos da novela.
Quando Ivan estava doente, sua raiva diante de seus familiares acabou afastando sua esposa, que tentava uma aproximação. Creio que o moribundo tenha simpatizado com Guerássim por ser uma pessoa “estranha” (tem gente que se sentem mais a vontade de conversar com estranhos) e, claro, pelo carinho e atenção que recebia dele.
A cena que Ivan olha para o filho caçula e percebe que ele enganou a si mesmo e acabou por enganar os outros, é o ápice. Na verdade o encerramento da novela é o ápice da narrativa.
Bjs!
Não faço parte do fórum, mas precisava ler o livro e adorei sua resenha, muito obrigado por compartilhá-la para a todos.
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