Há livros que entram em nossa vida e nos trazem tanta coisa e nos diz tanto que ao tentar falar sobre ele tudo foge, mas não por falta de palavras, ao contrário, por haver muito o que dizer em tão pouco espaço. esse é o caso de Dois Irmãos, do brasileiro Milton Hatoum, que ganhei de presente de aniversário da minha irmã Bia.
A escrita do Hatoum me pegou de jeito, e enlaçou-me de forma a nunca mais me soltar! Ele tem uma escrita densa, de linguagem que não é poética mas transpira poesia em imagens e entrelinhas; é extremamente envolvente e nos faz mergulhar no prazer de uma literatura de primeira, daquelas que a gente lê e fica com medo de ler qualquer coisa depois, já que o risco de se decepcionar com o próximo lido é grande!
O romance é um intricado labirinto de acontecimentos e emoções! Tem como base, como o próprio título já diz, a história de dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, pertencentes a uma família de origem libanesa que vive na Manaus do início do século XX. Eles são extremamente opostos e desde a infância desenvolvem uma rivalidade que culmina num ódio violento e que, para tristeza de toda a família, atinge à todos.
O enredo é cíclico, e o autor costura, alinhava muito bem o tempo real e as reminiscências do narrador, cujo nome descobriremos ao final do romance, bem como o que vai sendo revelado e encoberto pela trama. O ponto de partida para a história, que logo de início nos fala da morte de Zana, a matriarca da família, se dá efetivamente com a narração da vida e da história de amor entre Halim, um mascate libanês, que se apaixona por Zana, filha de outro libanês, dono de um restaurante. Uma história de amor intensa, fogosa e que não tinha muito de reservado.
Vi Halim e Zana de pernas para o ar, entregues a lambidas e beijos danados, cenas que eu via quando tinha dez, onze anos e que me divertiam e me assustavam, porque Halim soltava urros e gaitadas, e ela, Zana, com aquela cara de santa no café da manhã, era uma diaba na cama, um vulcão erotizado até o dedo mindinho.
Dessa união nascem, à contragosto de Halim, que não tinha a menor vontade de dividir o amor de sua mulher com ninguém, os gêmeos Yaqub e Omar (o caçula, por ter nascido por último) e Rânia. depois que os filhos nascem, Halim se sente cada vez mais deixado de lado por Zana, pois está devota um amor quase obsessivo pelos filhos, principalmente por Omar, o caçula, por sua "frágil saúde". Já na infância ocorrem os primeiros conflitos entre os irmãos, e por volta dos 13 anos de idade a pior das brigas será provocada por um amor em comum. Omar, enciumado por sentir-se preterido, acaba atingindo o rosto de Yaqub com uma garrafa quebrada, deixando uma cicatriz que marcaria, para sempre, o ódio entre os irmãos.
Na tentativa de evitar um conflito ainda maior entre os filhos, Halim resolve enviar um deles, com amigos, para passar um tempo com sua família no Líbano. Mas o apego exagerado de Zana pelo caçula Omar, faz com que ela o proteja, enviando assim, Yakub, que passará 5 anos remoendo a preterição da mãe, passando privações, até que a família mandará buscá-lo. De volta à Manaus, não consegue perdoar a mãe por não tê-lo escolhido, nem se mostra capaz de conviver com o excesso de proteção dela para com o irmão, e torna-se cada dia o mais esquivo dos filhos, apesar de sua bela aparência e de seu ar sedutor. E a cada dia que passa a rivalidade entre os dois é acirrada, e com isso a relação de todos os familiares e agregados da casa são moldados com a mão pungente desse ódio fraterno. Enquanto Yaqub se esforça e se destaca nos estudos e profissionalmente, Omar segue o caminho oposto, tornando-se um boêmio, dependente, incondicional do amor e proteção da mãe, que irá sempre rivalizar com as mulheres que aparecerão na vida do caçula.
Há em Dois Irmãos uma gama de personagens fortes e tão bem construídos que não há como deixar de lado suas personalidades e suas tramas, no entanto, falar um pouco mais sobre cada uma delas é falar de partes importantes do enredo e quebrar o encanto da futura leitura. Vamos conhecer Domingas, a empregada-índia, órfã e ex-interna de um colégio de freiras e mãe do narrador Nael, que também iremos conhecendo aos poucos, de acordo com a narração de suas horas de conversas, ouvindo as confidências do velho Halim. E ainda há a irmã caçula, Rânia, que acalenta uma relação quase incestuosa, entre afetuosa e sensual, com os irmãos, que seriam, aparentemente, cópias perfeitas do seu parceiro ideal:
Omar reaparecia, de carne e osso, sorrindo cinicamente para a irmã. Sorria, fazia-lhe cócegas nos quadris, nas nádegas, uma das mãos tateava-lhe o vão das pernas. Rânia suava, se eriçava e se afastava do irmão, chispando para o quarto ...
Como ela se tornava sensual na presença de um irmão! Com esse ou com o outro formava um par promissor... Rânia, não a mãe, ganhou os melhores presentes dele (Yaqub)... Ainda chovia muito quando a vi subir as escadas, de mãos dadas com Yaqub; entraram no quarto dela, alguém fechou a porta e nesse momento minha imaginação correu solta.
E como a história se passa no final dos anos 60, Hatoum não deixa de inserir fatos que falam de política, da ditadura militar, narrando, mesmo que de forma rápida, sobre as tropas do exército pelas ruas, a censura dos meios de comunicação e o assassinato, em janeiro de 1964, do professor de francês, o poeta Laval, cujo passado estava ligado ao Partido Comunista.
Ao lermos Dois Irmãos, é impossível não associarmos às lembranças que temos, da criação católica, de Caim e Abel, bem como de Esaú e Jacó. Vemos em Zana, a encarnação da personagem bíblica , Rebeca, mãe dos gêmeos Esaú e Jacó, que também prefere um filho ao outro, e cuja a rivalidade será praticamente eterna.
Há no romance uma riqueza tão grande de detalhes, uma elegância e consistência que fazem dessa obra um verdadeiro tratado das relações humanas, um verdadeiro clássico que deve ser devidamente apreciado por todos! Ao findar a leitura, num suspiro, fiquei a ouvir a voz de Nael, e acalentando um desejo tão grande de abraçá-lo e encher sua vida de poesia e belezas...
♥♥♥♥♥
Título: Dois Irmãos
Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras - selo Companhia de Bolso
Ano: 2006
Número de páginas: 198
3 comentários:
Já morrendo de vontade de ler!
Enquanto lia a resenha lembrava justamente de Esaú e Jacó, um dos livros que mais gosto de Machado. Se te fez lembrar dele, acredito que será muito bom!
Beijo enorme Paty, maravilhosa a resenha!
Paty,
Se a intenção da sua resenha era deixar com vontade de conhecer esse livro, missão cumprida!
bjo
Tati e Michelle, esse livro é de uma densidade e força que tive vontade de nunca mais terminá-lo para que jamais perdesse de vista essas personagens... Impossível não embarcar junto com Halim em seu mar de amor por Zana, difícil não ter vontade de dar umas sacudidelas em Zana e Omar... rs E muitas outras emoções e sensações.
Tati, é um verdadeiro estudo psicológico tb, viu!! ;oD
Xerinhos, lindezas!
Paty
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