Nascida nos Estados Unidos e criada no México, Jennifer Clement, que foi de 2009 a 2012 presidente do PEN México tendo seu trabalho focado no desaparecimento e assassinato de jornalistas, nos apresenta, em Reze pelas mulheres roubadas o resultado de uma série de entrevistas feitas com toda sorte de mulheres em Guerrero. Série essa que levou mais de dez anos, onde a autora entrevistou assassinas, ex-mulheres e filhas de traficantes, vítimas de abusos, meninas e mães abandonadas por pais, maridos e filhos, entregues a própria sorte numa das regiões mais violentas do México; no entanto, para contrabalancear a acidez de tantas formas de violência, a autora fez desses relatos, com uma boa dose de humor e poesia, uma obra de ficção.
" Na nossa montanha não havia homens. Era como viver onde não havia árvores. É como ser uma pessoa com um braço só, minha mãe dizia. Não, não, não, ela corrigia a si mesma. Morar num lugar sem homens é como dormir sem sonhar.
Nas montanhas de Guerrero, próximo a Acapulco, no México, nascer mulher é o pior que pode acontecer a uma família. Nascer mulher é como uma sentença de tortura, numa terra onde o que reina é a violência, seja a dos homens, da natureza, do Governo, do tráfico e a dureza que se auto-impõem, para garantir, diariamente, mais um dia de vida. Não há moradores homens nessa montanha, pois quando adulto eles têm dois caminhos: ou se tornam parte da rede de narcotráfico que controla boa parte do país ou vão embora para as cidades grandes pra conseguirem uma vida melhor e muitos ainda se arriscam em travessias ilegais das fronteiras com os Estados Unidos, em busca do sonho americano, prometendo às mães, esposas e filhas uma vida melhor, que voltarão com dinheiro e ainda acenam com a chance de as tirar da montanha quando tudo se estabilizar. Mas tudo não passa de parcas e porcas promessas... E é justamente quando li sobre essa evasão dos homens que me veio a lembrança um episódio da nossa própria história, os vastos casos das "Viúvas da seca", mulheres de todo o Nordeste brasileiro que foram abandonadas por seus maridos, que partiam para o "Sul" em busca de uma vida melhor, e com as mesmas parcas e porcas promessas, mulheres que tiveram que cuidar sozinhas dos filhos e do pedaço de terra seca que lhes cabiam...
Mas esse não é apenas mais um ponto antigo da história brasileira, ainda hoje temos notícias das "viúvas da seca" ou como também são chamadas" Viúvas de marido vivo", pois por conta das secas que ainda existem no Nordeste, uma boa parte dos homens ainda se ausentam, nos períodos da seca, enquanto as mulheres permanecem em casa, principalmente na zona rural, mantendo a organização do trabalho que lhe cabe, o feminino, o trato com a casa e os filhos, e ainda dando conta de todo o trabalho tido como masculino, lidando diretamente nos currais e lavoura. Mas diferentemente do Brasil, em Guerrero as mulheres devem se manter feias, precisam se camuflar, se escondem em buracos cavados na floresta, cortam os cabelos curtos, como homens e muitas vezes se mutilam, escondendo todo e qualquer traço de feminilidade, pois só assim se mantêm a salvo de serem simplesmente roubadas e usadas como escravas sexuais dos narcotraficantes.
Esse é todo o mote de Reze pelas mulheres roubadas, mas ainda há mais. Narrado em primeira pessoa, por LadyDi, (sim, seu nome é por conta da princesa inglesa) uma adolescente que, no vai e vem de seus dias, nos vai contando sua vida, e a das pessoas com quem convive, através de suas vivências, impressões e principalmente de suas memórias. Ela nos fala, num tom cru e direto, mas também poético e com um humor diferenciado, sutil, sobre o calor infernal da montanha, dos bichos peçonhentos que as rondam diariamente, da impossibilidade de ao menos se sentarem ao pé de uma árvore para descansar, pois podem ser "devoradas" pelas formigas e outros insetos; da falta de saneamento básico, de educação e saúde. O único salão de beleza das redondezas é o da bonita Ruth, que tinha o sonho de tornarem as mulheres mais bonitas, e por isso deu o nome de Ilusion ao seu salão... Sim, tudo uma grande ilusão, pois ela só trabalhava para torná-las ainda mais feias. Médicos e professores, só se viam com muito custo, profissionais desinteressados que mal davam conta de cumprir o prazo de sua obrigação de serviço social. Mas é quando o Professor José Rosa chega à cidade, com suas formas educadas e com toda a sua bagagem de conhecimentos que as meninas tomam consciência de quem realmente são e de como vivem.
"Ela era uma índia mayan pequena, marrom-escura, da Guatemala, com cabelo preto e liso. Eu era uma mistura tamanho médio, marrom-escura, de sangue espanhol e asteca de Guerrero, México, com cabelo crespo que provava que eu também tinha sangue africano, de escravos. Nós éramos apenas duas páginas dos livros de história do continente. Você podia nos arrancar do livro e nos amassar e jogar no lixo."
“Quando olhamos para ele, olhamos para nós. Cada imperfeição, nossa pele, cicatrizes, coisas que nunca nem tínhamos notado, nós vimos nele”
LadyDi ainda nos fala de seu difícil relacionamento com a mãe alcoólatra, cleptomaníaca, forte e que ainda carrega ardendo na pele a mágoa de ter sido traída pelo marido com todas as mulheres do vilarejo bem como com mulheres que ele certamente arrumou na América, mas que também se mantém informada porque, apesar de não ter saneamento básico em casa, elas têm televisão, onde assistem a programas como o National Geographic e a Ophra.
“Minha mãe assistia à televisão porque era a única forma de sair da nossa montanha”
Nos fala ainda de suas melhores amigas, Maria, Paula e Estefani, de como tinham que correr pra se esconder quando ouviam os helicópteros sobrevoarem a montanha e descarregarem veneno nas plantações de papoula, de como viu Paula, "mais bonita que Jennifer Lopez" ser roubada pelos traficantes e voltar depois de um ano, como um fantasma, cheia de cicatrizes no corpo e na alma. E nos choca ao demonstrar como todos os tipos de violência são absorvidos ao cotidiano da vida como algo normal e como, apesar de toda dor, ainda há sentimentos de amor pela terra onde nasceu, pelas pessoas que as tornaram, de certa forma, ainda mais áridas.
"aqui nós perdemos nossos homens, pegamos AIDS com ele, com suas putas americanas, nossas filhas são roubadas, nossos filhos vão embora, mas eu amo este país mais do que a própria vida.Então ela disse a palavra México bem devagar, e repetiu: México. Foi como se lambesse a palavra de um prato."
Ler Reze pelas meninas roubadas foi uma ação totalmente ambígua; foi uma leitura dificílima dado o grau de violência e abandono que circunda a vida destas mulheres; entretanto, a forma como a autora consegue narrar estas histórias de tristeza e abusos, aliando um misto de discurso jornalístico, poesia e humor, a uma escrita econômica mas tão carregada de realismo transformou a experiência em algo fácil e prazeroso... De uma forma tão sensível e mesmo delicada, Jennifer Clement conseguiu esboçar perfeitamente os vínculos que foram criados entre as personagens, nos fazendo crer que apesar da violência e de todo o sofrimento é somente através dos vínculos afetivos que se é capaz de viver e mais, sobreviver. Foi como transitar entre o sagrado e o profano, entre o trágico e a inocência redentora. É um livro incrível, que nos mostra claramente o problema real que permeia as questões de gênero, de violência e de como é construída a vida social dessas comunidades desfavorecidas, esquecidas e deixadas de lado pelo poder público no México e em várias parte desse nosso vasto mundo.
"amor não é um sentimento. É um sacrifício."
♥♥♥♥♥♥
PS: Reze pelas mulheres roubadas é um dos cinco finalistas do PEN/Faulkner Award for Fiction de 2015, a mais importante premiação a reconhecer as mais relevantes obras de ficção publicadas nos Estados Unidos. O resultado sairá no dia 02 de maio de 2015.
Título: Reze pelas mulheres roubadas
Título original: Prayers for the stolen
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Editora: Rocco
Ano de lançamento: 2015
Número de páginas: 240
2 comentários:
Resenha poderosa, Paty, parabéns! :)
Depois do vídeo da Denise a curiosidade por esse livro foi quase nacional, hahaha. Fiquei louca para ler. O tema é revoltante, e a sua resenha já me deixou revoltada com toda a situação presente na história. Imagina como eu não vou ficar lendo o livro!? Haha, preciso me preparar bem antes de iniciar a leitura.
Saber que histórias como essa estão acontecendo de verdade dá uma dor no coração, não dá? :/
Gostei muito desse livro, principalmente por fazer as pessoas pensarem nesse assunto.
beijo grande,
Pipa
Postar um comentário